quarta-feira, 28 de outubro de 2009

A MENINA QUE TINHA UMA MOSCA COMO ANIMAL DE ESTIMAÇÃO

O texto de hoje não é um conto de fadas, mas é um conto realmente interessante que integra o livro "As Boas Mulheres da China". Faz parte da nossa pesquisa sobre a Bela Adormecida e trata do abuso sexual dentro da família. Vale a pena ler.

"querida yulong,
você vai bem? desculpe por não ter escrito antes. não há motivo para isso, é só que tenho muito a dizer e não sei por onde começar.
já é tarde demais para lhe implorar que me perdoe o erro terrível e irreversível mas eu ainda quero lhe dizer: querida yulong, eu sinto muito!
você fez duas perguntas na sua carta: ' por que você não quer ver o seu pai' e 'o que a fez pensar em desenhar uma mosca e por que a fez tão bonita':
querida yulong, estas são duas perguntas muito, muito dolorosas para mim, mas vou tentar responder.

qual é a menina que não ama seu pai? um pai é a grande árvore abrigando a família, as vigas que sustentam uma casa, o guardião de sua mulher e de seus filhos. mas não amo meu pai - eu o odeio. na véspera de ano-novo do ano em que fiz onze anos, levantei bem cedo e, inexplicavelmente, estava sangrando. fiquei tão assustada que me pus a chorar. a minha mãe, que veio ter comigo quando me ouviu, disse: 'hongxue, você cresceu': ninguém, nem mesmo ela, tinha me falado sobre coisas de mulheres antes. na escola, ninguém ousava fazer essas perguntas ultrajantes. naquele dia, mamãe me deu uns conselhos básicos sobre como lidar com o meu sangramento, mas não explicou mais nada. fiquei entusiasmada: tinha me tornado mulher! saí correndo pelo quintal, pulando e dançando durante três horas. até esqueci o almoço. um dia, em fevereiro, estava nevando muito e mamãe tinha saído para visitar uma vizinha. meu pai tinha vindo da base militar, para uma das suas raras visitas. ele me disse: 'sua mãe diz que você cresceu. vamos, tire a roupa para o papai ver se é verdade': eu não sabia o ele que queria ver, e estava muito frio - eu não queria tirar a roupa.

'rápido! o papai ajuda!' disse ele, tirando-me a roupa com destreza. ele, que normalmente tinha os movimentos lentos, estava totalmente diferente. começou a passar as mãos pelo meu corpo inteiro, perguntando o tempo todo: 'esses mamilozinhos já incharam? é daqui que o sangue vem? esses lábios querem beijar o papai? é gostoso quando o papai passa a mão aqui, assim?'

eu me sentia morta de vergonha. pelo que me lembrava, nunca tinha estado nua na frente de ninguém, exceto nos banhos públicos separados. meu pai notou que eu estava tremendo. disse-me que não tivesse medo e me preveniu para não contar nada à mamãe: 'sua mãe jamais gostou de você' disse. 'se ela descobrir que eu amo você tanto assim, vai querer saber ainda menos de você'.

essa foi a minha primeira 'experiência de mulher': depois, tive uma náusea muito forte. a partir de então, bastava que minha mãe não estivesse na sala - ainda que estivesse só na cozinha, cozinhando, ou no banheiro - para que meu pai me prensasse atrás da porta e me alisasse inteira. fui ficando com medo cada vez maior desse 'amor'.

mais tarde ele foi transferido para outra base militar. minha mãe não podia ir junto por causa do emprego dela. e disse que tinha se esgotado criando a mim e a meu irmão e que queria que meu pai cumprisse suas responsabilidades por um tempo. assim, levou-nos para morar com ele. eu tinha caído na toca do lobo.

a partir do dia em que minha mãe foi embora, toda tarde meu pai se enfiava na minha cama enquanto eu descansava. ocupávamos um aposento num dormitório coletivo e ele usava a desculpa de que meu irmãozinho não gostava de cochilar à tarde para trancar a porta e deixá-lo do lado de fora. nos primeiros dias, só passava a mão pelo meu corpo. depois começou a forçar a língua na minha boca. aí começou a me cutucar com a coisa dura na parte inferior do seu corpo. vinha para a minha cama, já sem ligar se era dia ou se era noite. usava as mãos para me abrir as pernas e me molestar. até enfiava os dedos dentro de mim.

naquela altura tinha parado de fingir que era 'amor paterno': ameaçava-me, dizendo que, se eu contasse para alguém, seria criticada em público e teria que desfilar pelas ruas com palha na cabeça, porque já era o que chamavam de 'sapato usado': meu corpo, que ganhava formas rapidamente, o deixava cada vez mais excitado, enquanto eu me sentia mais e mais aterrorizada. pus um cadeado na porta do quarto, mas ele não se importava em acordar os vizinhos e batia até que eu abrisse. às vezes enganava outras pessoas no dormitório e elas ajudavam a forçar a minha porta, ou então dizia que precisava entrar pela janela para pegar alguma coisa porque eu tinha o sono muito pesado. outras vezes era o meu irmão quem o ajudava, sem saber o que fazia. assim, trancasse eu a porta ou não, ele entrava no meu quarto, em plena vista de todos.

quando ouvia as batidas eu com frequência ficava paralisada de medo e me enrascava tremendo embaixo do acolchoado. os vizinhos me diziam: 'você estava dormindo como uma morta. o coitado do seu pai teve que entrar pela janela para pegar as coisas dele!': eu não ousava dormir no meu quarto, não ousava ficar sozinha de maneira alguma. meu pai percebeu que eu estava sempre encontrando pretextos para sair e criou a regra de que eu tinha que estar de volta na hora do almoço, todo dia. mas era comum eu adormecer antes mesmo de terminar de comer: ele estava pondo remédio para dormir na minha comida.

eu não tinha como me proteger.

muitas vezes pensei em me matar, mas não tive coragem de abandonar o meu irmãozinho, que não teria ninguém a quem se voltar. comecei a ficar cada vez mais magra, até que adoeci gravemente. na primeira vez em que fui internada no hospital militar, a enfermeira de plantão disse ao médico, dr. zhong, que eu tinha o sono muito perturbado. acordada assustada ao mais leve ruído. o dr. zhong, que nao conhecia os fatos, disse que era por causa da minha febre alta.

mas, mesmo enquanto eu estava assim doente, meu pai vinha ao hospital e se aproveitava de mim, que estava com o tubo na veia e sem poder me mexer. uma vez, quando ouvi entrando no meu quarto, comecei a gritar descontroladamente, mas meu pai simplesmente disse à enfermeira - que viera correndo - que eu tinha muito mau gênio. naquela primeira vez só passei duas semanas no hospital. quando voltei para a casa, encontrei meu irmão com um machucado na cabeça e manchas de sangue no casaco.

contou que papai estivera de péssimo humor enquanto estive no hospital e o surrava ao menor pretexto. naquele dia o animal doentio que era o meu pai apertou-se enlouquecido contra o meu corpo, ainda desesperadamente frágil e fraco, sussurando que tinha morrido de saudade de mim! não pude conter o choro. aquele era o meu pai? tinha tido filhos só para satisfazer seus desejos animalescos? dera-me a vida pra quê?

minha experiência no hospital tinha me mostrado um jeito de continuar vivendo. injeções, comprimidos e exames de sangue eram preferíveis a viver com meu pai. assim, comecei a me ferir repetidamente. no inverno, encharcava-me de água fria e saía para o gelo e a neve. no outono, comia comida estragada. uma vez, em desespero, prendi o braço embaixo de um pedaço de ferro que estava caindo, para cortar a mão esquerda na altura do pulso. (não fosse por um pedaço de madeira macia embaixo, eu certamente teria perdido a mão). nessa ocasião, ganhei sessenta noites inteiras de segurança. entre ferimentos que eu mesma me causava e os remédios, fui ficando aflitivamente magra.

mais de dois anos mais tarde, minha mãe conseguiu uma transferência no emprego e veio morar conosco. a sua chegada não afetou o desejo obsceno que meu pai sentia por mim. disse que o corpo dela estava velho e murcho e que eu era a concubina dele. minha mãe não parecia notar a situação, até que um dia, no final de fevereiro, quando meu pai estava me batendo porque eu não tinha lhe levado alguma coisa que ele queria, gritei com ele pela primeira vez na vida, dividida entre a mágoa e a raiva: 'o que você é? bate em qualquer um quando tem vontade, molesta qualquer um quando quer!':

minha mãe, que assistia à cena, perguntou o que eu queria dizer com aquilo. assim que eu abri a boca, meu pai, encarando-me furioso, 'não diga absurdos!': eu não aguentava mais e contei a verdade a minha mãe. vi que ela ficou tremendamente perturbada. mas, poucas horas depois, a minha 'sensata' mãe me disse: 'pela segurança da família toda, você vai ter que suportar isso. caso contrário, o que é que nós todos vamos fazer?'

minhas esperanças foram completamente destruídas. minha própria mãe me dizia que tolerasse os abusos do meu pai, marido dela. onde estava a justiça disso? naquela noite minha temperatura chegou a quarenta graus. fui novamente trazida para o hospital, onde continuo até agora. simplesmente desmaiei, porque tinha tido um colapso cardíaco. não tenho intenção nenhuma de voltar para aquele suposto lar.

querida yulong, é por isso que não quero ver meu pai. que espécie de pai é ele? não digo nada por causa do meu irmãozinho e de minha mãe (ainda que ela não goste de mim). sem mim, eles ainda são uma família como antes. por que foi que desenhei uma mosca e por que a fiz tão bonita?

porque anseio por uma mãe e um pai de verdade, uma família de verdade, onde eu possa ser uma criança e chorar nos braços dos meus pais; onde eu possa dormir em segurança na minha cama, em casa; onde mãos carinhosas me afaguem a cabeça para me consolar depois de um pesadelo. desde a infância mais tenra nunca tive esse amor. esperei e ansiei por ele, mas nunca o tive, e agora jamais o terei, pois só se tem uma mãe e um pai.

uma mosquinha me mostrou um dia o toque de mãos carinhosas. querida yulong, não sei o que vou fazer depois disso. talvez eu a procure para ajudá-la de alguma forma. posso fazer muitas coisas e não tenho medo de dificuldades, desde que possa dormir em paz. você se importa se eu for? escreva e diga, por favor! eu gostaria mesmo de saber como você vai. continua praticando seu russo? você tem remédios? o inverno está chegando de novo, você precisa se cuidar bem.

espero que me dê oportunidade de remediar o mal que causei e fazer alguma coisa por você. não tenho família, mas espero poder ser uma irmã mais nova para você.

desejo-lhe felicidade e boa saúde!
sinto saudade de você.
hongxue, 23 de agosto de 1975.

esta carta me abalou profundamente, e encontrei dificuldade em me controlar durante a transmissão daquela noite. muitos ouvintes escreveram depois, perguntando se eu estava doente. terminado o programa, telefonei para a uma amiga pedindo para que fosse à minha casa para ver se estava tudo em ordem com o meu filho e a babá. depois, sentei no meu escritório vazio e pus em ordem os pedaços de papel. foi assim que li o diário de hongxue.

(...)


21 de abril - chuva leve
resolvi que vou ter um filhote de mosca como animal de estimação.

(...)


11 de junho - ?
só agora parei de chorar. ninguém sabia por que eu estava chorando. os médicos, os enfermeiros e outros pacientes pensaram que eu estivesse com medo de morrer. a velha mãe wang diz que 'a vida e a morte estão separadas por um fio'. acho que ela deve ter razão. a morte deve ser como o sono; gosto de dormir e de estar longe deste mundo. além disso, se eu morresse, não teria que temer que me mandem para a casa. tenho só dezessete anos, mas acho que é uma boa idade para morrer. serei jovem para sempre e jamais ficarei velha como a velha mãe wang, que tem o rosto todo marcado de rugas.

eu estava chorando porque o meu filhote de mosca morreu. anteontem à noite, só escrevi algumas linhas em meu diário e tive que parar porque me senti muito tonta. levantei para ir ao banheiro e, na volta, bem quando estava prestes a me deitar de novo, vi um par de olhos demoníacos na cabeceira da cama, cravados em mim. fiquei com tanto medo que gritei e desmaiei.

o dr. liu disse que delirei pela metade de um dia, gritando o tempo todo sobre moscas, demônios e olhos. a velha mãe wang disse aos outros pacientes que eu estava possuída por um mau espírito mas a enfermeira-chefe mandou-a parar de dizer bobagem.

(...)

27 de agosto - chuviscando
(...) acho que o ferimento do meu braço está levemente infeccionado. virou um grande caroço vermelhoe e está muito desconfortável escrever. mas eu disse à enfermeira que trocou o curativo que estava tudo bem e que não precisava mais passar pomada. para minha surpresa, ela acreditou! as mangas compridas do pijama do hospital cobrem os meus braços completamente. espero que dê certo.

'moscas são grandes portadoras de doenças'. as palavras da dra. yu me deram uma idéia, que decidi experimentar. não me importo com as consequências. até a morte é melhor do que voltar para a casa. vou esmagar a mosca grande em cima do corte no meu braço.

(...)
hongxue morreu de septicemia. na caixa de papéis havia um certificado de óbito, datado de 11 de setembro de 1975. (...) ao ser informado do suicídio da filha, o pai de hongxue sentira remorso? será que a mãe, que tratou a filha como um objeto a ser sacrificado, algum dia descobriu em si mesma um pouco de natureza materna? eu não sabia das respostas a estas perguntas. não sabia quantas meninas molestadas sexualmente estavam chorando entre os milhares de almas que dormiam na cidade naquela manhã."


"A MENINA QUE TINHA UMA MOSCA COMO ANIMAL DE ESTIMAÇÃO - Xinran - AS BOAS MULHERES DA CHINA"

Um comentário:

  1. Triste historia...em saber que o pai foi responsável pela morte da filha...deveria ter pena de morte p uma besta dessas....

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